Inconstitucionalidade

O trabalho no Lixão das Camélias - Tapes
reportagem e fotografia: luciane godinho
“Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
 
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.”
Ferreira Gullar

A água faz falta na localidade de Butiá das Camélias, em Tapes, não só para fazer a comida e para banhar as crianças, como também para por em condições os materiais que eram catados no Lixão. Dele, elas reaproveitavam roupas, calçados, eletrodomésticos, além dos materiais, vendidos para o galpão de reciclagem de Fabiano Pereira Rocha.
“Bichinho da chuva” era apelidada pelos moradores a patrola da Prefeitura, que fazia o trabalho de “mascarar” os danos causados ao meio ambiente, conforme afirmou Júlio Vandam, de Os Verdes. “Sempre que ela passa, vem chuva”, diz Débora.
 Nas festas de final de ano e carnaval, muitos dos moradores conseguiram tirar um bom dinheiro com o que era despejado no lixão, porque a Cooperativa não estava dando conta da seleção. E, segundo os moradores, os motoristas das caçambas se preocupavam em largar algo ali para ajudá-los. Meninos e rapazes corriam atrás das caçambas, logo que chegavam, mas as mulheres preferiam horários em que o sol não estivesse tão quente. Quando iam para o Lixão, os cães acompanhavam “faceiros”. “Eles só se criaram com comida do lixo”, diz Débora. ”Não dávamos comida, nem ração”.
“Trabalhei oito meses na Cooperativa dos Catadores e não agüentei”, conta Elisângela da Conceição Oliveira, 27, separada. “Pagava para trabalhar”. Suportou por oito anos uma estrada de chão batido, de bicicleta, sóis e chuva e ainda teve que arrumar alguém para cuidar das três filhas pequenas: Vitória, dez, Glória Maria, nove, e Eduarda, sete. Catando diretamente no aterro do Lixo das Camélias, onde a Prefeitura ainda depositava alguma coisa, enquanto tramitava a ação judicial em função dos danos ambientais, ela conseguia tirar cerca de R$ 400 em duas semanas. Trabalhava com que dava mais: alumínio, pet, plástico mol. “Só de pet catei 400 kg, fiz R$ 200.” “Alumínio, 30 kg”. Para ela, compensava arrastar bolsas para casa com até 50 kg de peso. Questionada se desenvolveria outra atividade, se tivesse oportunidade, ela disse que sim.


Luciane Passos, conta que crianças catavam lata e brinquedos, as mulheres, calçados com pouco uso ou com pequenos defeitos de fábrica. Já encontraram até dinheiro no lixo- notas de R$ 5, R$ 10, botijão de gás, ventilador, TV torradeira funcionando


O menor J. e o irmão, tiravam cerca de R$ 15 por dia cada um, a cada vez que catavam no Lixão, com o que ajudavam a mãe

Vidas em torno do lixo

Oito horas da manhã Dilso Lacerda da Silva, 46 anos, encilha os cavalos para iniciar a coleta do lixo nas ruas 02 e 03. No início foi difícil, porque as pessoas misturavam o lixo seco ao orgânico e não amarravam bem as sacolas, mas ele bateu de porta em porta, a pedir a colaboração dos moradores.  O que recolhe vai para a Cooperativa Mista dos Carroceiros e Recicladores de Tapes, da qual é presidente e onde trabalham 23 pessoas- a maioria mulheres, que se revezam entre o período diurno e noturno e no cuidado dos filhos.

E, se inicialmente, os carroceiros tinham que recolher apenas o lixo seco, logo o quadro mudou, porque passaram a recolher também o lixo orgânico, porque a Prefeitura necessitava do caminhão para levar o orgânico para o Lixão das Camélias, o que já causa o apodrecimento da madeira, “freio não tem”, diz.

Uma creche foi prometida pela Prefeitura Municipal, assim como moradia e assistência veterinária aos cavalos dos 15 carroceiros, o que nunca aconteceu, mas que rendeu propaganda governamental nos principais jornais Estado. Pelo trabalho de coleta, cada carroceiro recebe R$ 600 da Prefeitura Municipal, através de convênio firmado, mas com os descontos trabalhistas e manutenção da carroça e cavalos, o montante líquido não chega a R$ 400,00- menos de um Salário Mínimo, que é o mais baixo valor que um trabalhador pode receber, conforme a Constituição Brasileira. “Bóia, remédio, é tudo do nosso bolso”, diz Dilso.

Mas já às seis e meia da manhã saem de casa, da localidade de Butiá das Camélias, o casal Airton Lacerda da Silva, 43, e Elaine Fontes dos Santos, 41, a fazer um trajeto, cuja rotina já tem três anos, de 12km de bicicleta para chegarem na Cooperativa, na Avenida Camaquã, porque o município não oferece transporte público.  Ganham cerca de R$ 240 reais por mês cada um, “às vezes nem isso”, diz Airton. “E, ainda, quando faltamos, não recebemos”. “A vida dele é trabalhar no lixo, não sabe fazer outra coisa”, diz a vizinha Elisângela Oliveira.
De cada cooperado é descontado R$ 58, a fim de manter em dia o compromisso com o INSS. A Cooperativa paga metade das contribuições num mês, metade noutro, enquanto a Prefeitura de Tapes acumulou um rombo de R$ 1.673.517,02 junto INSS. A multa do Tribunal de contas do estado por essa e outras irregularidades do prefeito Sylvio Tejada foi de R$ 1.500.

Na cooperativa fica um funcionário da Prefeitura coordenando o serviço dos cooperados, embora não tenham vínculo empregatício algum com a autarquia que, logo no início das atividades, também tinha se comprometido a fornecer o equipamento de segurança para o trabalho, pagar a conta de água e ainda, segundo a tesoureira da Cooperativa, Vânia Silva Silveira, 26 , havia se comprometido de complementar o salário dos cooperados, caso não chegassem a um salário mínimo.

Há pouco tiveram a água  cortada – por falta de pagamento da Prefeitura, e renegociaram a dívida em cinco vezes de R$ 195. A situação levou ao cancelamento da compra das luvas, óculos e botinas de proteção, que seria obrigatório. Luz, água, materiais de trabalho, seguridade social para os trabalhadores, somadas as despesas da Cooperativa, resta muito pouco para ser dividido entre os associados, que trabalham, em média, 10, 12 horas por dia.

Outros ainda preferem, ao invés de participarem da Cooperativa, devido à baixa remuneração, catar o lixo seco direto nas ruas como os amigos Luiz Antônio Santos, 38- o Toni, ou o Adão Luis Souza, 43 anos. Eles tiram cerca de R$ 600 por mês, vendendo o material para o depósito de reciclagem de Fabiano Pereira Rocha. São cerca de 50 famílias- inclusive de Sentinela do Sul e Sertão Santana, que vendem material para ele já há cinco anos, desde que abriu o negócio, que funciona com licença da FEPAM. Ele tem dois empregados de carteira assinada.

Dilso Lacerda da Silva e um dos sete filhos


Os quatro cães da família acompanham a jornada ao lado da carroça



São quatorze anos de trabalho com o lixo. Hoje Dilso é o presidente da Cooperativa, fundada em 2008 com recursos do governo federal


Cooperativa Mista dos Carroceiros e Recicladores de Tapes

 "Tem gente que vira a noite", diz a tesoureira da Cooperativa, Vania. "Entram às 18h e saem no outro dia às 5 horas da manhã".


O sinal da troca de turnos da Cooperativa
Lixão das Camélias, interditado pela justiça em cinco de abril: embora seja a melhor fonte de renda para muitas pessoas, acarreta uma série de problemas para a saúde (pública) humana e comprometimento de reservatórios naturais (rios, nascentes)


O carrinho incrementado do catador Toni

Fabiano Rocha

Publicado na Revista Mexicana Refundación