Direitos desumanos

Vila dos Pescadores de Tapes

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada 

“E o que vão fazer agora?”, indaga o pescador Divino Freitas da Silva, morador da Vila há 26 anos. “Fizeram essa imundície e me mandaram entrar. Como é que vai ficar? O que é da gente eles não dão.”

As moradas que desejavam os pescadores não têm nada a ver com grandes projetos, sonhados condomínios horizontais ou verticais ou moradias de alto standing. Conforme estudo da Assistência Social da própria Prefeitura, realizado em meados de 2006, para que fosse pleiteado o recurso, junto à Caixa Econômica Federal, “a motivação e a elevação da auto-estima” da comunidade seria “uma das diretrizes fundamentais”, o que seria conseguido “com as obras do Projeto de Reforma e Ampliação das Residências”. Em função de uma parceria entre Prefeitura de Tapes e Crehnor, de Sarandi, o que os pescadores sofreram foram humilhações e casas que estão se desmanchando. O empreiteiro Roberto Barreto Brandão anoiteceu na Vila e não amanheceu- sumiu, informam os pescadores.
A Vila foi se constituindo sobre uma área de Zona Costeira Lagunar- Àrea de Preservação Permanente- APP, e, embora haja programas específicos do Governo Federal para a regularização fundiária de colônias de pescadores- consideradas áreas sociais, que incluiria acordo com a marinha, e paguem IPTU, nenhuma ação da Prefeitura foi tomada a respeito. Por isso, os pescadores foram submetidos a ameaças e ofensas por parte do empreiteiro Roberto e representantes da Crehnor, sob a alegação de que “deveriam dar graças por estarem recebendo as casas, porque estão em área irregular”, conforme contaram Nina, Isabel e Divino.
Do princípio
“Íamos à Caixa, às vezes entre oito, treze mulheres, e eles diziam que era com a Prefeitura”, diz Isabel Centeno dos Santos, 36 anos, quatro filhos, casada com Volmor Rosa dos Santos, 48. Às terças, a Prefeitura é aberta ao público, então foram ao prefeito Sylvio Tejada, cobrar a promessa de campanha. “Ele dizia que era com a Caixa”, relembra. “Eu desanimei na hora, pensei: vai dar uns peixes bons e a gente mesmo constrói.”
Em abril de 2009, entraram em contato com os moradores, representante da Crehnor e outro da Caixa Econômica Federal. O valor de R$ 1200, que deveriam pagar para Crehnor, poderia ser parcelado em até três vezes. “Liguei para o Volmor que estava na praia, e ele disse dá tudo lá”, conta. Isabel pegou o seguro-defeso do marido e deu a entrada. “E o meu ficou para fazer um rancho bom de comida.”
Em 16 de abril de 2009, começaram a casa dela. No dia seis de maio, se mudou. “Até mudei de noite”, diz, tamanha a ansiedade. Depois os vizinhos queriam desmanchar-lhe a casa, porque a tesoura era dupla e dos outros não. “Éramos 22 pescadores envolvidos nisso”.
Recebeu a casa- como os demais pescadores, sem alicerce, reboco, mal salpicado, sem forro e apenas com contrapiso. Teve que colocar novas portas, porque as que foram colocadas caíram. E, quando colocou lajotas, era um cm de massa nos cantos da casa e nove cm ao meio para o nivelamento. “Meses depois, vieram colocar o forrinho do banheiro”, ri Volmor. “Que adianta colocar o forrinho no banheiro?” Ela diz que o pedreiro mesmo afirmou que ali não havia R$ 3 mil em material, por ser de “segunda”, enquanto o crédito disponível para cada beneficiário era de R$ 5.900.
Oscar e Alzira Mancilia gastaram cerca de R$ 2 mil para fazerem o alicerce da casa e mais mão-de-obra, porque, segundo informaram, não estavam incluídos no valor da obra, assim como para os demais beneficiários. “Perguntaram para gente se não queríamos ir para outro local”, diz Alzira. “Mas levantamos toda a noite para ver se tem água nos barcos”. Preocupação que seria reduzida se existissem os molhes, cuja verba de R$150 mil está disponível desde 2006, e que também faz parte do “Projeto de Revitalização da Vila dos Pescadores”, elaborado pela Prefeitura.
O casal André e Juliana Oliveira gastou cerca de R$ 500, somente no alicerce de três camadas. A fossa, que também constava no Projeto da Prefeitura como fator a ser resolvido na Vila, apareceu dois meses depois de terminada a obra para que os moradores colocassem. “Os tijolos quebravam na mão”, conta Alzira, que teve que agüentar, muitas vezes, os pedreiros alcoolizados dentro de casa. “A porta da Juliana já quebrou”, fala, referindo-se à filha que mora aos fundos da casa dela. “O Brasilite mais barato não poderia haver. Forro não existe. Muita coisa foi reaproveitada das casas velhas. As paredes foram mal salpicadas e, quando chove, corre água.” Por aí, segue enumerando as decepções.
Mesmo para os que apenas desejassem reforma, os valores eram os mesmos, tanto do pagamento para a Crehnor quanto o valor do benefício. Nina Freitas também teve as portas e janelas caídas, logo que colocaram, além do que, quando tomam banho no banheiro construído, alaga a cozinha, e chove dentro de casa “como na rua”.
O pescador Divino Freitas da Silva depositou a primeira parcela e ficou o inverno todo com a família num galpão, esperando a reforma da casa. Tinha solicitado dois quartos, Brasilite, piso de azulejo e janelas e portas de madeira. Exigiu seus direitos e foi ameaçado pelo empreiteiro Roberto de levar um tiro- caso que foi parar na Delegacia de Polícia. A juíza aconselhou que fizesse acordo com Roberto, caso contrário, ele não poderia entrar na casa para fazer a reforma. Ele também teve que fazer o reboco das paredes, e a porta, no outro dia em que se mudou, caiu. “Do telhado chove como na rua, a viga já partiu e agora está rebentando a parede”, diz. “Nós somos pobres, nós pescadores”.
Segundo Divino, eles tinham que entregar a casa rebocada e não fizeram. Tenta ligar para Crehnor, que sumiu, desde outubro, e não há retorno. Para a segunda etapa das construções das casas, a Crehnor ao invés de R$ 1200, estava solicitando R$ 2 mil para todos.
Carlos Joel Duarte da Silva, Tô, como é conhecido, 42 anos, quatro filhos, casado com Viviane Cardoso Ribeiro, foi cadastrado pela Crehnor como tendo prioridade. O empreiteiro mandou desmanchar parte da casa que era a cozinha. Ficaram literalmente a ver, não navios, mas os barcos ancorados na Sanga. “Todos os papéis que ele nos mandou entregar, fizemos”.
O casal é de Palmares do Sul e mora na Vila há cinco anos. Utilizaram dois anos de seguro-defeso para construírem a casa que estão morando agora. Aproveitaram o telhado da antiga morada, e a ergueram com madeira de eucalipto. Gastaram com materiais R$ 2 mil, a construírem ele e o cunhado. Agora ele diz que se ganhasse, daria a casinha para a vizinha, dona Maria Fagundes, de 64 anos, que também necessita de uma nova moradia.
“Veio uma fossa muito tempo depois de nos entregarem a casa”, diz Maria Isabel de Souza Castro, 32 anos, mãe de um menino. “Como já tinha colocado, levaram de volta”. A casa está praticamente como entregue: portas e janelas sem trinco, paredes mal salpicadas, Brasilite com grandes frestas, fiação mal feita, sem tomadas. O poço negro foi iniciativa dela e do marido, que pagaram R$ 50 ao pedreiro pela mão-de-obra.

A casa de Isabel foi construída sem alicerce, com apenas duas carreiras de tijolos
 Divino Freitas
Maria Isabel: “Se a gente tivesse administrado esses R$ 5.900, teríamos feito algo muito melhor”, lamenta, ao fechar a porta que amassa com os dedos.

Mandaram Tô e Viviane desmanchar parte da casa, mas acabaram construindo com recursos próprios, de dois anos de seguro-defeso economizados


Publicado no Armazém de Notícias de Tapes